segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Biblioteca que Arde

Os dedos das pessoas chupam o saber que lhes passa na vida. Quando o dono deles dá o último suspiro, há uma biblioteca que arde.  

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

SIMPLES

Quase ninguém repara em ninguém. Em parte porque o espaço que nos circunda está cheio de chamadas; o ser humano, longe do que se pensa, é o que menos se nota no mundo.

MEMÓRIA

A memória é uma armadilha que altera, e subtilmente reorganiza o passado, por forma a encaixar-se no presente.

FÉRIAS

Chegam dias de férias. Uma boa ocasião para vermos fábricas de dívidas a passearem-se em águas turvas. De desastre em desastre, não aprendemos com os erros.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

TARDE

A tarde começa a sair do céu. E no azul pardacento existe duas linhas brancas a rasgar o norte. Perto delas há pássaros com asas abertas. Debaixo deles existem braços e pernas a mexerem-se com veemência, com intuito de expelir a tristeza e colocar a mente em cima dos ombros. O ritmo é dado pela música louca, por vezes tresloucada, por vezes diabólica. Por fim, tudo termina. Mas tudo recomeça quando a noite lambe a periferia das estrelas.

Simples

Olho para a multidão que aponta os defeitos dos outros e conheço o inferno.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

SIMPLES

O uso e abuso das estratégias utópicas, leva a coser remendos em fatos que não vestem ninguém, ou, até, a empreender lutas que provocam estragos dificilmente reparáveis.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

EXCERTO

(excerto em bruto do texto que escrevo...)

O Zé da Tina assoa o nariz. Como há manchas vermelhas na manga do pijama e no bordo do lençol e muco na gola e resquícios no queixo, o meu nariz fica enfastiado. Engulo o vómito que ele me provocou e tiro o suor da testa. Ele chupa-me o sentimento. Por isso, as mãos dele procuram nojo nas partes ocultas. O embate torna-se inevitável. A sequela disso é irracional porque os braços parecem hélices com nervos nas pontas. Perto do fim, um pedaço gordo desprende-se da mão. Faz uma viagem sem turbulências, sem desvios, e aterra, com distinção, nos cabelos dos Carga de Ossos. Fico mudo, mas os ouvidos fotografam a voz do vulcão que expele montanhas para o Zé da Tina. A cama articulada é por isso uma base murcha, com água a circular pelo meio. Para evitar anomalias no futuro, coloco o corpo a fazer de muro e atiro placidez aos nervos. Eles cospem-me impropérios, lançam-me farpas e amansam quando insisto. Porém, dizem à tristeza que, para a próxima, o guarda-chuva será aberto porque não querem ter mais bronquite no cabelo. O tiro foi doloroso. E o Zé da Tina, com o peito ferido, enrijece os músculos. Depois dá pinchos histéricos, dá bofetadas a tudo e dá nervos à língua. Quando os dentes perdem a força, há palavras que são armas e há frases que são bombas: “Cabeças de arroz”, “Formigas caquécticas”, “Vou enfiar-vos o guarda-chuva no olho do…”, “Chega”, grito-lhe, “Chega. Ouviste? Chega. A discussão termina agora”, e olho para os Carga de Ossos. O peso da ordem submete-os ao pudor camuflado pelo cabelo.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

BANHO DE LÁGRIMAS

- há uma tempestade de lume a mastigar as árvores
os arbustos
as flores
os animais
há uma tempestade de lume a chafurdar-se no grito das pessoas

- há lenços negros junto das estrelas
há pontas de medo a correr nas veredas

-quando a alvorada estende o lençol
a aldeia é um monte de cinzas e o futuro é um banho de lágrimas

terça-feira, 7 de julho de 2015

CIRCO

Em cima da erva, o Victor Hugo Cardinali brinca com os leões. À volta, os meninos, sentados nas bancadas, mastigam alegrias e os pais escondem os ouvidos. 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

TRIO MARAVILHA

O trio maravilha passeia-se pela cidade e cumprimenta, com o chapéu, todos os desconhecidos. Alguns deles dão asas aos lábios porque o gesto dentro daquela indumentária alcança a comédia. Mas a sinfonia azeda que advém daí não lhe retira a simpatia. Por fim, a noite cai. E as ruas perdem uma amostra da bondade.


quarta-feira, 24 de junho de 2015

ORGÂNICO - Poesia

Alguns comentários à obra:

Resenha de leitura do livro de poesia "Orgânico"
Comentário de "uma leitora atenta, que não conhece nenhum dos envolvidos nesta publicação, e comprou o livro através do Facebook"
"quanto ao poeta mais novo, Silvio Silva, me surpreendeu pela poética inovadora que, situando-se no presente, nos abre caminhos de futuro. Para lá da preocupação social revelada num “tom inconformista” no dizer do prefaciador, Dr. Luís Quintino, Sílvio Silva, revela uma enorme preocupação pela arte de dizer, recorrendo a imagens e metáforas onde cada palavra é um signo indissociável do seu significante e significado, remetendo-nos para leituras várias e contundentes: “a penúria levantase/ergue-se a fome”, “os olhos fazem chuva/a morte tritura-lhe a mente”, “a meio do vidro/há um clamor gordo”, “olhos largos/ouvidos abertos/bocas impacientes”, palavras carregadas de sentidos, que fora do contexto podem parecer absurdas, mas contextualizadas no espaço dos poemas ganham força e interpelam o leitor. Como diz Blanchot: « Écrire, c’est entrer dans l’affirmation, c’est se libérer au risque de l’absence de temps où règne le recommencement éternel.»/Escrever, é entrar na afirmação, é libertar-se do risco da ausência do tempo onde reina o recomeço eterno. Maurice Blanchot, “L’Espace Littéraire”, Éditions Gallimard, 1955 "
Rendido ao poeta e ao comentário... Dá vontade de entrar por lugares-comuns e dizer: uma lufada de ar fresco no panorama literário ...


segunda-feira, 15 de junho de 2015

NOITE

Há um abraço apertado a unir monstros pretos que estão na pele dos corpos. Perto disso estão olhos duros, que vertem ciúmes para cima do rosto. Em frente, uma rua. Uma rua sem carros nem pernas, porque o relógio tem dedos em números nocturnos.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

RUA

No centro da rua estão motores empenhados. Perto deles estão cabeças a gritar. Felizmente, o vidro esconde uma parte dos nervos.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

ORGÂNICO

Aqui ficam os registos fotográficos do lançamento do projecto de poesia em livro "Orgânico".
Cinco poetas juntaram-se para reflectir sobre temas sociais como a fome, a pobreza, o desemprego, as desigualdades sociais, a emigração, a igualdade de género, a ecologia, os desmandos dos mais poderosos e da política.
Todas as receitas da venda são para distribuir por instituições com provas dadas no combate a estes flagelos. Através da palavra, pretendemos ter um papel vivo e actuante e não ficarmos indiferentes à dor e ao sofrimento humanos.
O PVP do "Orgânico" é de 10 €. Na medida em que a colocação do livro em loja importaria que quase nada sobrasse para entregar às instituições, estamos a fazer a venda directa.
Peço a tod@s @s Amig@s que não fiquem indiferentes a este projecto solidário e que, por mensagem privada, me contactem para adquirir o livro. Nós suportamos o custo do envio.
Vamos a isso? 


no meu caso, o valor angariado vai para: http://www.oscsilviacardoso.pt/


segunda-feira, 18 de maio de 2015

VITÓRIAS E DERROTAS

O que as vitórias têm de mau é que não são definitivas. O que as derrotas têm de bom é que também não são definitivas.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

SIMPLES

Tchékhov disse que para um escritor as perguntas são mais importantes do que as respostas. Tem razão. As pessoas que têm muitas certezas estão sempre a tentar mudar os outros enquanto que as que não têm tantas certezas procuram transformar-se a si mesmas.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

PODER

O menino de boas famílias que não sabe pensar, mestre em lisonjear o poder, acima de tudo com o seu silêncio, vestido como deve ser, nunca levanta a voz, e um dia aparece rico, num cargo de poder, onde serve zelosamente.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

AMAR

O amor não resolve nada, mesmo nada, porque é pessoal, e alimenta-se das palavras mansas e do respeito mútuo. Por isso não transcende para o colectivo. Mas andamos há mais de dois mil anos a dizer que é importante amarmos uns aos outros. Serviu de alguma coisa? O mundo está melhor?    

segunda-feira, 27 de abril de 2015

DEGRADAÇÂO

Assistimos à degradação humana sem carregar no travão. Por isso, hoje já ninguém pergunta como vai a tua vida, ou quais são as tuas ideias. Hoje, infelizmente, todos perguntam quanto ganhas, de que cor é o teu telemóvel, da tua gravata, do teu casaco, ou qual é a viagem que vais fazer no próximo mês.

terça-feira, 14 de abril de 2015

VIDA SOCIAL


Pequenos pedaços da tarde, de um dia qualquer, são suficientes para perceber que o homem é selvagem na vida social.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

PALAVRAS



Procuro palavras intensas no meio do milho para construir uma torre. Todavia, o dia só me traz folhas riscadas. Felizmente, com a noite, acaricio frases perfumadas.

terça-feira, 7 de abril de 2015

REFLECTIR

O conhecimento constrói-se com pedaços de saber.

VENTO

O vento encaracola o mar e, por isso, há ondas do tamanho do mundo que esburacam as costas das ravinas. No miradouro estão olhos nocturnos a beber os sucos da paisagem. Isso permite-lhes despir o cansaço e preparar a mente para o dia de amanhã.

segunda-feira, 23 de março de 2015

RUA

A rua está cheia de intervalos, que obrigam os condutores a fugirem da oficina. Em cada uma das margens existem fachadas com buracos. Num deles está um vaso, um vaso com uma pequena floresta. Atrás dela aparece um monstro com barba na cara, que resmunga coisas quando o sol lhe sussurra aos olhos. Depois desaparece, desaparece para beber os líquidos da vida. 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Olhos moles



- pantufas escuras espalhadas pelo céu
olhos moles metidos no cartão

- chove
o vento é uma mão que esbofeteia o mundo
um pedaço de ferro que incendeia os sonhos

- a pobreza levanta-se
ergue a fome
depois estica as dívidas
massaja os músculos

- por fim encosta-se
boceja
olha para o silêncio
a luz dos candeeiros ilumina-lhe a solidão

- o cansaço chega em cataratas
em rios rápidos
e as dores mordem-lhe os ossos

- vira-se
ajoelha-se e arrasta-se até à montra

segunda-feira, 16 de março de 2015

JANELA

Na janela do segundo andar está uma carcaça a espreitar os movimentos da bola, que são produzidos por olhos pequenos e por penas musculadas. Quando a bola dança com as redes, o bulício de quem chutou modifica a boca da carcaça. Por isso dá outra vida às paredes do ninho, que são mais velhas do que a alma do meu avô. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

As palavras que nunca te direi

As palavras que nunca te direi estão guardadas na memória. A chave para as libertar está na tua língua. Para isso terás que lhe pedir para produzir outras ideias, outros mundos, onde a soma das premissas é um livro novo, uma atmosfera mais amiga do amigo, mais próxima da justiça. As palavras que nunca te direi estão presas, mas podem ver a luz do dia se apagares luz da noite. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Roupa de Inverno

     Estive na Fnac. Namorei com os livros; almocei uma página quando o meu olhar ficou preso a uma montanha de ideias. E revi velhos conhecidos que há muito navegavam no desconhecido. Esse turbilhão cultural, apimentado com lufadas do passado, permitiu-me refrescar o pensamento e permite-me, no dia seguinte, acordar com flores nos lábios. Não é por acaso que, quando tiro o pé da cama, ouve-se um pássaro a chilrear.

                No exterior, a manhã é uma pequena noite porque as nuvens são tristezas que correm para a linha que divide o céu da terra. Perto da igreja, as beatas falam da vida dos outros. Do outro lado da praça estão bocas secas e línguas afiadas, que apenas dão caneladas na gramática ou dizem mal de quem aparece na televisão. E por cima, a dois palmos das telhas, aparecem cabeças taciturnas para prever o futuro.

                Faço o mesmo. Mas a paisagem é um túmulo. Por isso fecho a janela e vou para o interior do ninho. Pouco depois, a tarde pinta o céu de azul e eu saio de casa com roupa de Inverno.

sexta-feira, 6 de março de 2015

HÁ UM ESTRANHO NA CAMA - Preguiça Magazine

          Os pássaros regressam aos ninhos porque a noite afugenta a tarde. Por isso as telhas e as árvores são casas de fados. No asfalto, os sapatos da menina Alzira, que passam muitas noites ao relento, varrem as folhas amarelas e os ramos apodrecidos. O objectivo não é limpar a rua que é quase uma travessa. O objectivo é pedir ao tempo que marque, no relógio, a hora de abrir “O teu cabelo está em boas mãos”. O cabeleireiro da dona Maria, inaugurado com champanhe francês e camarão grelhado, fora o ponto de encontro das coquetes, na época em que o dinheiro empanturrara carteiras inertes. Mais tarde, quando a crise chacinava o despesismo, tudo mudou. Até o sorriso da dona Maria. Mas o Zé da Tina, habituado às coisas difíceis, descobriu a forma de a esposa voltar a ter a Primavera no rosto.

          Por fim, o sino da igreja toca. Toca para logo ficar calado. Ao fundo da rua, a dona Maria faz crescer as sombras que saltam das casas. Nas fachadas, o silêncio, a viver por detrás das janelas, observa o cabelo a saltitar. Quando a menina Alzira a encontra, dá um suspiro. Um suspiro grosso, quase violento. É um gesto estranho, que roça no exagero ao de leve, mas a ânsia de afogar as brancas na cor do chocolate explica-o por completo. A dona Maria apercebe-se disso, mas faz de conta que não o viu.

          O cabeleireiro é um quadrado. Um quadrado com duas portas na parede dos fundos. A decoração é simples, talvez em demasia, mas o bar tem pormenores geniais. O estabelecimento tem então duas margens, e está, como tal, a léguas dos outros tempos. No centro está a máquina que dá banho ao cabelo. A menina Alzira senta-se nela, usando gestos apressados. E a dona Maria, conhecedora dos hábitos da cliente, dá um sorriso. Um sorriso lento, calmo, enquanto faz o que tem a fazer. Depois, com a toalha na mão, pede-lhe para sentar o corpo na cadeira de couro, onde o vidro mostra os efeitos do trabalho. Ela faz-lhe a vontade.

          Assim que a cor do chocolate sai do pincel e se mistura com a água, a água que baloiça dentro do copo, aparecem as primeiras palavras. A dona Maria foi quem as lançou, demonstrando que o negócio, para ter êxito, precisa de diálogo. Ao princípio, a menina Alzira usa frases curtas. Tão curtas, que os ouvidos ficam vazios quando recolhem as palavras do ar. Depois, o tiroteio não descreve, nem um pouco, as frases que lhe saem dos lábios. Mas, aos poucos, a voz acalma-se, perde fulgor. Isso permite-lhe contar, em pormenor, como foi assinar, na semana passada, o contrato de trabalho com a empresa dos Barrigas ao Sol. A novidade fabrica-lhe lágrimas na berma dos olhos. E produz júbilos grandes na dona Maria.

          Quando o secador fica calmo, as línguas ficam mudas porque a dona Maria produz veneno nos olhos. É um veneno que mostra desagrado. E o motivo está nos gestos que a cabeça da menina Alzira andou a fazer. Ela fica envergonhada, as bochechas assim o indicam, e olha para o cabelo que parece uma folha velha a cair sobre os ombros. Torce o nariz, como quem dobra papel, e pede-lhe, com timidez, para recomeçar o trabalho. A dona Maria, magoada com o passado, pega nas ferramentas sem lhe dar uma palavra. Entretanto, a menina Alzira, para dar outro destino ao silêncio dela, pergunta-lhe se a acha obesa. Ela diz-lhe que não, que pelo contrário. E acrescenta, sem migalhas azedas a sair do olhar, que poucas, com a idade dela, podem gabar-se do mesmo. A menina Alzira desconfia da frase – acha que há algum exagero dentro dela. Mas a dona Maria, habituada a interpretar olhares, diz-lhe que da boca dela só sai o que o coração lhe envia. Nada mais. A menina Alzira fica então acabrunhada, e vira-se. Depois, quase em surdina, pede-lhe desculpa. Ela aceita. Por isso a menina Alzira sacode os nervos do rosto. E aproveita o silêncio do secador para afirmar que, para a semana, vai para o ginásio. Comer muito e mal está a estragar-lhe as ancas.

          Por fim, o cabelo é uma camisa passada a ferro, uma estrada com alcatrão. E as brancas são uma página do passado. Uma memória com barbas grandes. Isso dá flores à menina Alzira, que tira da carteira uma nota de vinte. A dona Maria mete-a na registadora, e acompanha a cliente até à rua. Dizem coisas vulgares e coscuvilham a vida dos outros. Falam ainda do governo e criticam os impostos. Depois dizem adeus com os braços, como se fossem árvores empurradas pelo vento.

          Na rua, os candeeiros iluminam os passeios e pedem aos pássaros para silenciar as músicas. Não é por acaso que, em pouco tempo, lá em cima, o silêncio ganha corpo. Cá em baixo, a Alzira tem borrachas nos sapatos porque os passos são pequenas gotas a embater na calçada. Como tal, afirmar que o silêncio é imaculado, é ser falso. Dizer que ele não existe, é falsear o momento. Escrever que ele é magro, é ouvir a verdade.

          No fim da rua há uma praça. Uma praça com uma estátua no meio. É uma homenagem pobre a um homem grande, que no século passado descobriu muitas coisas. Depois há uma rua, que é uma linha estreita e escura. Por fim há uma porta, uma porta como todas as outras.

          A Alzira sobe os degraus. A madeira range e as sombras dão passos. No topo, a sala convida-a a pousar o cansaço no sofá, a desfazer-se do peso que traz no ombro. Ela rejeita o convite, e vai para o quarto. O conforto da cama dá outro mimo ao peso que tem nas pálpebras.

          Em cima do cobertor, com as pernas e os braços encolhidos, diz adeus à noite que a espreita da janela. Os sonhos acotovelam-se logo dentro dela, fazem guerras duras para saber quem a comanda. A viagem à América Latina faz fintas aos adversários, dá saltos estupendos. Isso abre brechas nos braços dos outros. Depois corre, corre como se fosse vento, e aproveita um lugar baldio para fugir à concorrência. Mais tarde, quando os obstáculos ficam para trás, a porta do pensamento abre-se ao vencedor e o sonho entra. Entra devagar. O corpo dela ganha então asas, asas fortes e longas que o levam para o Brasil. Depois para o México, para a Argentina, para a Colômbia, para a Venezuela, para a Bolívia, para o Chile, para o Peru. Depois há uma pausa. Uma pausa pequena para contemplar o Pacífico. E depois há a continuidade da viagem. Mas, ao contrário do início, o percurso apanha vento que é uma floresta densa, uma mão que abana o braço da montanha. As asas sentem os beijos do medo, os toques do receio. Sentem o grito do retorno. O corpo sente o mesmo quando o vento alarga os ombros, engrossa os músculos. Por isso ela acorda. Acorda como quem se liberta da forca. 

          O olhar dela vê a noite a deambular pelo quarto, a cumprimentar o silêncio como se fossem íntimos. Para dar luz à memória que paira perto dele, acende o candeeiro. Depois analisa todos os pedacinhos da viagem, todas as palavras trocadas com desconhecidos amáveis, com crianças felizes. Os lábios dela ganham então sorrisos perfumados e as bochechas imitam os cumes das montanhas. De repente, do outro lado da cama, há um movimento. Um movimento sussurrado, quase tímido. Ela vira logo o olhar para o mistério e, com perspicácia, fotografa o corpo de um homem, que tem os joelhos colados ao peito e as mãos sob a nuca. Encarquilha o rosto, alarga os olhos e recebe ideias no pensamento. Mas não há uma que a esclareça.

sábado, 27 de abril de 2013

CIDADE

A luz do crepúsculo pinta o rosto dos prédios. Porém, a base das construções dança com as sombras.

SIMPLES

A dor de hoje será amanhã alegria; nada existe que escape à transfiguração.

LIXO

O lixo sai de casa e repousa no aterro onde é tratado e transformado, ninguém se preocupa com os contentores ou os carros da recolha ou os homens que o transportam. Mas é esse lixo residual, esse que se agarra às paredes e às mãos, a diferença entre o produzimos e o que tratamos.

MÃO

Antes que a igreja anuncie o horário que marca no relógio, colocamos os pés onde a decadência e a desilusão vivem no mesmo quarto. No centro da praça está uma mão de pedra que nos convida a pousar a fadiga nos assentos. Aceitamos a cortesia, mostrando-lhe a ternura dos sorrisos.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

SUGESTÃO

Publicado no ano da morte do autor, este romance foca o progresso da burguesia e a consequente decadência da nobreza. As personagens são, em geral, vagas, sem definição psicológica, servindo principalmente como elemento estrutural do conteúdo. A sequência temporal é evidente e marcada pelas várias circunstâncias que vão constituindo a ação, com as personagens perfeitamente integradas, desempenhando as suas várias funções e dando-nos a conhecer os seus pensamentos.

LÁGRIMAS

As lágrimas do céu entristecem o velho, o homem que vê o filho a perder o brilho da alegria porque o amor se transformou num ácido mortífero. Nem as palavras da Primavera, que fazem brotar das flores o beijo do paraíso, lhe retiram as sombras do pensamento. Mas o futuro irá mostrar-lhe que a decadência não é boa para o coração.

GOVERNO

E a sujidade do céu continua a escurecer os movimentos da cidade, contrariando as notícias dos jornais; e o vento, que parece a cara dum monstro, continua a varrer a pacatez e a ociosidade dos que foram colocados no desemprego. A Primavera, onde os pássaros cantam cantigas sorridentes, continua escondida num sítio medonho. Por isso é que o governo, vestido com a cor da democracia, legisla tristezas que a constituição rejeita.

PERGUNTAS

Saio da sala do cinema e cruzo-me com perguntas que me obrigam a parar. Como elas são persistentes, uso a voz para lhes dar uma resposta: "É mau!", e prossigo. Pouco depois ouço a tristeza a pedir aos funcionários a devolução do dinheiro.

terça-feira, 2 de abril de 2013

AMOR

As mãos do casal desenha um sentimento, que é mais bonito do que as cores da Primavera.

PENSAMENTO

As estrelas picam o queijo pardacento e obrigam-no, como quem ofende, a fugir da noite. A memória que eu tenho das nuvens cresce, intensifica-se e transborda quando o alguidar do cérebro se transforma numa mosca. Felizmente, a luz que vem do céu empurra-me para outros pensamentos.

sábado, 30 de março de 2013

Páscoa

As vozes procuram o silêncio quando os bolos pintam a mesa com as cores do mundo e o alho apimenta o sabor da carne. Mas a mente intoxica-se, porque a recepção ao compasso, no dia de amanhã, tem que ser perfeita.

terça-feira, 26 de março de 2013

A MUDANÇA

O vento passou e arrastou a inércia para longe. Mas a anarquia, amontoada pelas ruas e pelas praças, define um novo princípio para quem sai de casa logo pela manhã porque a tradição, a confortável tradição, tropeça em trabalhos inesperados. Talvez por isso, os bocejos são longos e pesados e os gestos são duros.

MEDO

A chuva tropeça nas folhas das árvores e cai no telhado como se fosse uma bomba. Sob o burburinho intenso está o Jarbas, o cão da minha tia. Junto dele está o meu medo. Mas os chicotes da chuva, que são agora mais violentos, obrigam-no a sair da janela e a esconder-se na cave onde o som da guerra não penetra.

DISTINÇÃO

Os beijos do casal desenham uma dor que arrefece a manhã. Mas a tarde, sem as poeiras pardacentas a empestar o céu, indica-lhes o caminho do prazer.

terça-feira, 19 de março de 2013

AMARRAS

Aos poucos, as amarras do medo vão desaparecendo. Na mesma proporção, a memória escreve na estória os dias que passei na cama.

segunda-feira, 18 de março de 2013

GRIPE

Não tenho tido voz para te obrigar a beber o sumo das minhas palavras porque a gripe entrou dentro de mim como se fosse um cometa.

CHUVA

A chuva, pontapeada pelo vento, chicoteia as costas da cidade. Os vidros, que protegem os olhos amedrontados, quase que partem. Mas o bulício – duro, rouco – obriga-me a tremer e a fugir para os arrumos, onde as memórias, cravadas em fotografias, me dizem para sossegar.

segunda-feira, 4 de março de 2013

CANSAÇO

Estou cheio de cansaço; tenho os olhos doridos. Para limpar o veneno do dia tomo banho, seco o desassossego e visto um pensamento que me faz ser uma estrela no meio da multidão.

sábado, 2 de março de 2013

O TEU FUTURO

Meto os pensamentos no cesto da inércia e olho para o céu. Perto da lua está o teu futuro!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

SIMPLES

Em regra, as armas, que são palavras bufadas com rancor, eliminam uma teoria utópica ou um pensamento superficial.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

LUZ

Na estrada, os carros levam os sorrisos para sítios que desconheço. O céu, no entanto, é uma morada do inferno porque os relâmpagos, roucos e duros como uma voz demente, fazem desenhos abstractos nas partes mais negras da noite.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

MÃOS

As mãos do senhor ficam silenciosas quando o pobre pede uma migalha. Mas, ao pé das roupas, pensadas por designers conceituados, a anarquia apodera-se das unhas porque é preciso pagar as contas!

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

DIA

As vozes que pedem ao dia um dia brilhante estão mais próximas de perder o fulgor, porque o comboio da vida perdeu mais um dia.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

SIMPLES

Perto dos objectos minúsculos, o crepúsculo é engolido pela noite. Da varanda do meu apartamento, que está a três pisos de altura do pavimento asfáltico, assisto ao acontecimento. O gesto, executado pela natureza, obriga-me a recordar os gestos dos homens. Mas quando as estrelas se acendem, os flagelos dissolvem-se no brilho dos meus olhos. Quase ao mesmo tempo, os candeeiros que estão presos às fachadas dos prédios iluminam os movimentos da solidão, que desce calmamente pela rua. Movo o olhar e espio-o.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ESTRELA

Não há estrelas no céu. Mas a felicidade, que está vestida de vermelho, trouxe-lhe o sonho: a menina que já não via há meses. Não é portanto de estranhar que o sujeito, calvo e magro como um tísico, tussa depois de ter dado muitos pulinhos. Pelos visto, o dia dos encontros, que é o dia dos namorados, ainda permite estar próximo da emoção.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

DESCOBRIR

Três misteriosos, vestidos com sombras amarelas, almoçam um pensamento. Em volta da mesa está a austeridade que faz de tudo para ouvi-lo. Mas o sino da igreja esbofeteia-lhe o rosto, como se o juiz incriminasse o pecador com gestos violentos.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

LONGE

Ao longe, os braços da alvorada empurram a noite para longe. Por causa disso, o silêncio mergulha na memória das pessoas que colocam os motores a trabalhar.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

TARDE

A tarde é um silêncio que lembra a voz dos mortos. E a preguiça do Jaquim, homem torto e de boca imunda, relembra-me o ressonar do meu avô. Mas os ais dos juvenis, que pisam o cebolo da Maria, que é amiga da cusquice, dão à Primavera um aroma vivaz. O vento, de olho astuto, empurra-o para dentro de mim. Por isso é que o meu corpo é uma ponta da anarquia.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

SUGESTÃO

O Crime do Padre Amaro apareceu, pela primeira vez, em folhetins, na "Revista Ocidental", em 1875, surgindo em volume no ano seguinte. Sabe-se, no entanto, como Eça de Queirós apurava de edição para edição as suas obras, alterando-lhes, por vezes substancialmente, o estilo, o enredo e a estrutura. A fixação do texto e as notas desta edição de O Crime do Padre Amaro, assim como de todos os títulos subsequentes, são da autoria da Sra. Dra. Helena Cidade Moura, especialista de reconhecido valor no âmbito dos estudos queirozianos. A versão tomada como base foi a de 1880, última revista pelo autor. Inclui-se também uma carta inédita de Antero de Quental, cujo manuscrito autógrafo incompleto se encontra na posse da família de Eça de Queirós e que nos foi amavelmente facultado.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

PAISAGEM

O pároco dá um bocejo preguiçoso. A paisagem, silenciosa e metida na sua sesta, investiga a descortesia. Mas o cansaço não lhe permite tirar conclusões. Por isso é que o crepúsculo inunda o horizonte.